Aderaldo Luciano

cordel e outros laços

Categoria: regular

Uma saudação aos poetas passados


Manoel Camilo foi grande editor de cordel. Proprietário de A Estrella da Poesia, de Campina Grande. Autor do célebre País de São Saruê. Escreveu esse saudação. Queria observar que no segundo verso deveria estar grafado, ao invés de Nicanor, Nicandro, para rimar com Leandro, imediatamente acima. Sendo esse Nicandro o poeta Nicandro Nunes da Costa, de Teixeira-PB, patriarca da poesia brasileiro, do interior do Nordeste.

Anotações para uma poética cordelial V

1.
Há uma insistência entre os pesquisadores e alguns poetas em vincular a xilogravura ao cordel. Em certo momento da década de 50 do século passado, essas duas artes se encontraram, mas são autônomas. A xilogravura é só mais um processo ilustrativo do cordel. Não o representa, nem é uma sua extensão.

2.
O romance sumiu do cordel. O cordel de gracejo, o cordel pedagógico, o cordel das adaptações estão tomando o lugar das pelejas, dos romances, das aventuras originais. Os cordéis sobre seu Lunga são best-sellers, sobre o peido, sobre a bunda, etc. Mas e os romances? Quem tem fôlego para o cordel original? Motivos não faltam? Faltarão poetas?

Anotações para uma poética cordelial IV

1.
O amigo Cláudio Portella, autor da biografia do Cego Aderaldo, disse-me acreditar que o cordel pode ser encarado como gênero literário. E eu concordo, discordando. É poesia lírica, épica e dramática. Por isso se confunde, mas um mergulho mais fundo (sem escafandro) pode afogar e aí, sim, beberemos suas certezas, respiraremos suas verdades e morreremos em paz!

2.
Durante algum tempo, minha posição diante da Academia Brasileira de Literatura de Cordel foi de crítica ferrenha por acreditar que estaria criando um gueto e fomentando a apartação. Amadurecendo na vida, comecei a perceber que posso continuar minhas críticas, mas de modo contributivo para o melhoramento da conduta e das relações. E é isso que passo a fazer: contribuir, não com críticas, mas com propostas críticas.

3.
Minha revisão pessoal leva-me, também, às críticas feitas às outras instituições agremiativas do cordel: precisamos dialogar e construir uma proposta única, mas multifacetada, sobre os rumos do cordel no Brasil. Um movimento de norte a sul.

4.
Vejo, ainda, que quanto à teoria, acontecerá com o cordel o aparecimento e consolidação das escolas. Coisa salutar, desde que os arroubos ideológicos (se é que ainda existem) não descambarem para as agressões pessoais.

Anotações para uma poética cordelial III

1.
O complô das elites brasileiras contra o cordel é algo que salta aos olhos. Sempre visto como subpodruto literário, relegado à margem, proibido de frequentar a roda literária dos doutores, nem por isso o cordel curvou-se, pelo contrário, estabeleceu-se de tal forma que podemos identificar sua couraça resistente, adornada com os adereços da vanguarda.

2.
O cordel tem por traço fundamental o verso de sete sílabas, mas não é só. O tempo quaternário de seu ritmo e a acentuação oferecem a preciosidade matemática que o transporta para o lado cabalístico, em minha visão pessoal, mas observável: o metro de 7, o ritmo de 4 e a acentuação de 3.

3.
Passo a acreditar que cordelista não é só aquele que produz o poema em cordel, mas todo mundo que, de alguma forma, contaminou-se enamorado por esse fenômeno poético. Assim, são cordelistas os que o fazem, escrevendo, lendo, ouvindo ou estudando. Até os que se negam a recebê-lo, o são.

4.
O traço formal básico do cordel é o lírico (ritmo, métrica, rima, estrofação linear, sonoridade, subjetividade). O traço social é épico (narrativo, recheado de diálogos, tempo e espaço, heróis, maravilhas). O traço existencial é dramático (pelejas representando as célebres cantorias, os encontros, os debates, as pulhas, as glosas).

Anotações para uma poética cordelial II

1.
As mudanças causam estardalhaço. No cordel, o importante não está no invólucro, na embalagem, no rótulo, mas na forma poética.

2.
Sabemos, ainda, que toda mudança no suporte físico do cordel é experimental. É saudável que haja discordância, mas lamentável o jogo de intrigas que alguns discordantes patrocinam, comprometendo o culto à alteridade e promovendo inimizades. Como já disse, há alguns que se julgam os delegados. Esses, a despeito, estão trancafiados em sua própria soberba.

3.
O cordel brasileiro, aparecido no Recife no final do séc. XIX, consolidou-se, contra toda espécie de vaticínio, na principal poesia do Brasil. Não porque ocupe espaço fundamental entre os estudos sobre a poesia nacional, mas por ser a única forma poética legitimamente brasileira.

4.
Embora pesquisadores acadêmicos e não-acadêmicos tenham conferido ao cordel uma gênese ibérica, faltou-lhes o principal: honestidade intelectual. Assim passou-se para a história de nossa literatura uma poesia que não é, senão, um prolongamento daquela matriz portuguesa da qual herdou o nome. Minha senda é desconstruir essa teoria, revisando seus conceitos e percurso histórico.

Metro, rima e oração?

 

1.

Há muito habita entre os cordelistas a tríade sobre qual o cordel está plantado: METRO, RIMA e ORAÇÃO. Mas isso diz tão pouco que chega a soar hermético para os não iniciados. Urge complementação e expansão desses conceitos para melhor enquadramento da poética cordelística.

2.

Considerando que em poesia, por ter como princípio as possibilidades da palavra, haverá sempre rima, por mais que os versos sejam brancos e soltos; considerando que sempre haverá metro, visto que todo verso contém sílabas poéticas, e que tudo, mesmo uma só vírgula, tem significado, aquela suposta tríade do cordel perde sentido. Por quê? Porque a poesia é maior que o cordel, sendo o próprio cordel forma poética.

3.

Por isso a necessidade de complementação: para o cordel vale o verso setissilábico; vale a rima soante, disposta na sextilha com a rubrica xaxaxa (onde os versos x não rimam entre si e os a, rimam; e o significado oracional está preso à sintaxe da língua portuguesa. Esse último ítem, entretanto, carecendo de maior aprofundamento e até de questionamento.

4.

Ainda sobre aquela tríade RIMA, METRO e ORAÇÃO, talvez o primeiro poeta a confessá-la tenha sido Antonio Teodoro dos Santos no cordel Lágrimas de Palhaço. O narrador abre assim:

Neste livro eu vou fazer
Rimas, oração e traço
Não quero que meu leitor
Na letra tenha embaraço
Saiba que agora vai ler
As “Lágrimas de um Palhaço”.

A capa reproduzida no início do post é da nova edição de 2010 da Editora Luzeiro.

Da vaidade

1.
A vaidade foi a desgraça de Lampião.

2.
Corrigir um texto em cordel é prazeroso e trabalhoso. Corrigir o texto de um poeta vaidoso, seja ele quem for, é criar uma inimizade que durará ad saeculum.

3.
Convencer o poeta de cordel sobre a necessidade de seu texto sofrer intervenções para curar-lhe vícios de linguagens, repetições desnecessárias, adequações gramaticais, supressão de cacófatos, excessos estilísticos, mantras obsessivos, problemas de acentuação ritmica e outras observações, pois bem, convencer o poeta de cordel é um trabalho que deve ser regrado pela paciência.

Um pitaco e uma assertiva

1. O pitaco:

Outro dia falei que o encontro do cordel e da xilogravura não oferta aos pesquisadores o direito de dizer que esta é sinônimo daquele. Ora, muitos astros de Hollywood povoaram as capas de cordéis e nem por isso foram transformados em seus ícones. Aliás, muitos estudiosos ignoram essa façanha.

2. A assertiva:

Silvino Pirauá de Lima criou o romance em versos e talvez tenha escrito o primeiro cordel; Leandro Gomes de Barros deu forma ao cordel como ele é conhecido, a partir da publicação do primeiro folheto; João Martins de Ataíde emprestou a publicação em série ao cordel e contratou poetas para trabalhar em escala industrial; Francisco das Chagas Batista pensou em um cordel de capa dura, com atrativos gráficos superiores.

A escolha

Repito enfaticamente:

Não é o poeta quem escolhe o cordel. É o cordel quem escolhe o poeta.

Logo, não adianta labutar no lodaçal. Se o poeta não consegue construir um poema em cordel, com mais de 30 sextilhas, é bom repensar seu intento. Se consegue escrever 28 apenas, tem uma luz, mas só. O cordel requer fôlego.

Da mesma forma, o poeta que escreve cinco sextilhas e diz que escreveu cordel, delira. Escreveu tão somente cinco sextilha, utilizou apenas a técnica do cordel, não escreveu um cordel.

Lembremos que uma sextilha solitária extraída de um poema de cordel, perde sua aura cordelística. É unicamente uma sextilha, um pintainho de acauã que do ninho caiu. E morreu.

Repito ainda:

O poeta de cordel tem que respirar cordel, mas precisa comer várias outras guloseimas.

Outras paródias

1. Inicio outra rodada de paródias com Georges Mathieu, em entrevista a Vintila Horia:— É evidente que o poeta de cordel se prepara para escrever. O problema está em saber ou prever se o fará de forma sábia ou demencial.

2. Thomas Heggen a Budd Schulberg: Leandro Gomes de Barros (o criador do cordel) foi sábio o bastante para logo perceber que a carreira de um escritor não é uma escada rolante, nem uma palmeira para que suba por ela, como macaco, se apoiando nas mãos. Um escritor, quando continua escrevendo é uma cordilheira… sou uma cordilheira, desço, subo, tenho chapadas, deslizes e até quedas.

 3. Vicente Huidobro: esses quase-poetas contemporâneos são muito interessantes, mas seu interesse não me interessa. 

Carro de boi, 30 anos depois

                   

Quando começaram os anos 80, nós, adolescentes que pensávamos em poesia no interior da Paraíba, não conhecíamos os autores paraibanos. Desconhecíamos o movimento Sanhauhá e sabíamos muito pouco do Jaguaribe Carne. Conhecíamos mais o cinema documental com as figuras de Wladimir de CarvalhoLinduarte NoronhaMachado BittencourtJoão Ramiro Neto e Ipojuca Pontes.

A pequena cidade de Areia, na região do Brejo, abrigava por essa época o seu Festival de Artes, reunindo peregrinos das artes de todo o Brasil. No ano de 82, chegava às nossas mãos alguns livros produzidos pelo Governo do Estado, sob o comando de Tarcísio Burity. A antologia Carro de Boi, a nova poesia paraibana, organizada por Juca Pontes, publicada no ano anterior, foi a primeira carta de orientação para nós.

Nela, estavam os novos. Os que faziam a poesia da Paraíba. E nós, que nos julgávamos os novos, chegáramos a cocnclusão de que não éramos nada. A Carro de Boi, todavia, não trazia autores interioranos. Estava recheada de autores radicados na capital ou em Campina Grande, a mais importante cidade paraibana naquele momento. Não havia a política de interiorização das ações culturais e tudo rumava para o litoral.

A Carro de Boi foi importantíssima mesmo assim. Lembro-me de ficar discutindo com os colegas quem era o melhor poeta, se Saulo Mendonça ou José Leite Guerra. Figuravam na antologia dois nomes que seriam conhecidos nacionalmente: Zé Ramalho, cujo Apocalypseestava reproduzido quase na íntegra, ou mesmo na íntegra, e que viria a se transformar em sucessos musicais com os nomes de Canção Agalopada e Beira Mar, Beira Mar Capítulo II e Beira Mar Capítulo Final. E Braulio Tavares, com Caldeirão dos Mitos, gravada depois por Elba Ramalho.

Eulajosé Dias de AraújoÁguia MendesPolíbio AlvesJomar SoutoAldo LopesMarcos AgraMarcos TavaresArland de Souza Lopes, José Antonio Assunção e o próprio organizador Juca Pontes formavam o time representante do esquadrão poético paraibano. Outro, Sérgio de Castro Pinto, terminou por se transformar em nome de referência por seu engajamento poético e crítico, professor da Universidade Federal da Paraíba. Mas foi a Carro de Boi que o levou para o interior.

A Carro de Boi trazia uma epígrafe de Lúcio Lins, poeta que se solidificaria na década de 90, morto em 2005, que reproduzimos como ágora, ao redor da qual elevaram-se os edifícios:

bordam-se palavras
que calam as rendeiras
quando em seu ofício

depois de finda a renda
vestem-se os poemas
em vários exercícios.

(Lúcio Lins – Dois Movimentos)

Circo! Lua! Baião!, espetáculo de 2009, pelo circo Crescer e Viver (texto escrito para o programa)

           

O interior do Nordeste foi marcado pela presença do circo. E o circo, pela presença litúrgica de um palhaço desbocado. Havia, porém, um ponto alto todos os dias. Era a segunda parte do espetáculo: a encenação de um drama. Vimos centenas de vezes a Paixão de Cristo. Além de sofrermos solidários ao Cristo crucificado, regozijavamo-nos com Judas se enforcando. Era uma limpeza de alma, uma calma para o espírito.

O circo ficava entre nós geralmente por um mês e nós, da cidade, terminávamos por conhecer as famílias circenses e participar de sua dura vida na perpetuação de sua arte. Muitos partiram com o circo e nunca mais voltaram. Tivemos essa vontade, mas vontade dá e passa. Os circos maiores traziam, de vez em quando, um cantor da moda, que tocava no rádio, e lotava a arquibancada.

Entre encenações de dramas, palhaços infames e cantores bissextos, vimos certa vez um negro vestido de cangaceiro, tocando sanfona e cantando “no gogó”, sem microfone, transformando o circo num arrasta-pé. Mais tarde saberíamos tratar-se de Luiz Gonzaga, fazendo o maior forró do mundo, preenchendo o nosso vazio, construindo o nosso itinerário. Aquela voz poderosa reside ainda hoje, fazendo eco, em nosso coração.

Foi a união da fantasia do circo e da música gonzagueana que deu-nos coragem de arribar e fazer o nosso verão. Foi com ela que embalamos nossos sonhos, malabaristas que somos na corda-bamba do tempo. Foi com ela que, como bons filhos, voltamos ao chão de onde brotamos e respiramos o ar de nossos tempos idos. Luiz Gonzaga é o arquétipo nordestino por excelência e o picadeiro é a vida a encenar-se.

Hoje voltamos para dentro da lona e compreendemos o que vem a ser o círculo. Como naqueles antigos circos sertanejos, retornando sempre na mesma época do ano, cá estamos nós, esperançosos para ver a cortina se abrir e lá, de um misterioso e secreto lugar, ver o Lua surgir, crescendo e se fazendo vivo, abrindo a sanfona branca e arrancando do peito a voz mais terna e saudosa a cantar: — Eu vou mostrar pra vocês… como se dança o Baião!