Aderaldo Luciano

cordel e outros laços

Toda adaptação dá origem a uma nova obra. Aqui também. A adaptação de Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, por João Gomes de Sá é, de fato, uma outra obra. O poeta reuniu coragem para transpor a história passada na Paris medievalesca para o sertão nordestino.

João Gomes de Sá é alagoano e autor profícuo, tendo escrito A luta de um cavaleiro contra o Bruxo Feiticeiro, profundamente enraizado na tradição cordelística. Em O Corcunda de Notre Dame, a adaptação de Notre Dame de Paris, ele se supera em maestria. Suas sextilhas iniciais são perfeitas:

O romance do Corcunda
De Notre Dame, leitor,
Escrito por Victor Hugo,
Aquele grande escritor.
Em versos vou recontá-lo
Sua atenção, por favor.

Antes, porém, quero dar
Essa breve explicação:
O cenário do Corcunda
Eu trago para o sertão;
O Nordeste brasileiro
É palco de toda ação.

Além da mudança do cenário para Santana de Cajazeira, denominação nordestina, alguns personagens também mudam de nome. Quasímodo passa a Quasimudo e seu guardião a Padre-Mal. Para nós é de extrema sagacidade a transposição da história. Ao poeta deve ser dado o direito de, na hora da adaptação, escolher cenário e nomes novos, sem alterar o enredo e o argumento original, já que o objetivo da coleção é apresentar a obra, incentivar o leitor a contactar a matriz. Além de nutrir a tradição do cordel narrativo adaptado de ousadia, na transposição do cenário, João Gomes assina seu cordel com o tradicional acróstico grafado JGSACORDEL:

Jamais o pobre Corcunda
Galgou deixar seu cantinho.
Santana de cajazeira
Abastece seu caminho,
Como elo para pedidos,
O norte para o bom ninho;
Recebe todo romeiro,
Dando-lhe muito carinho;
E espera ver seus fiéis
Libertos de tanto espinho.

Coisas e mais sobre Leandro Gomes de Barros

1. No dia 4 de marçoo aniversário de morte do maior poeta cordelista do Brasil: Leandro Gomes de Barros. Minha alegria de ter cruzado com Leandro e com sua obra é o que deve ser contado. Decidi reler toda a obra do bardo e identificar algumas peculiaridades. E assim vai: Leandro foi um homem de seu tempo. Filho da primeira revolução industrial, não vacilou e aliou-se à máquina. Dessa forma ilustrou a capa de seus folhetos com fotografia, mídia recém-descoberta. É célebre a estampa de seu busto na contracapa de seus folhetos para evitar falsificação. Montou sua própria tipografia e começou a publicação em série de seu lavra. Contactou distribuidores e pensou uma estrutura de marketing positivo. E aqui há uma observação a fazer. Quando se diz que Leandro viveu do que escreveu é informação incompleta. Pois não só escreveu, como produziu, diagramou, distribuiu, contabilizou, imprimiu, corrigiu, enfim foi o super-homem na linha de produção. Da concepção, escrita, impressão e distribuição foi ele o responsável. Viveu de seu trabalho diuturno. Leandro só pensava em cordel e em como aprimorá-lo, transformando-o em um item agradável aos olhos, ao tato e à mente. Literatura e entretenimento, isso o que queria Leandro.

Um poema perdido de Leandro?

Conta-nos Sebastião Nunes da Silva de fato acontecido entre Leandro e seu amigo e contraparente Francisco das Chagas Batista, quando este residia em Guarabira-PB. Numa das constantes visitas de Leandro, foram a um casamento a cavalo. Desse passeio resultou um poema de Leandro intitulado O Poltro do Meu Colega, referência ao cavalo desengonçado por ele montado. Ainda não encontrei tal poema, tampouco encontrei alguém que já o tenha lido. Sei apenas, noticiado pelo Nunes Batista, da resposta escrita em folheto por Chagas Batista e também desaparecida do acervo da Biblioteca Nacional. Transcrevo a primeira estrofe. No caso de não haver empecilho quanto aos direitos autorais posso transcrevê-la totalmente:

Leandro Gomes, um dia
Precisou de meu cavalo,
Falou-me para alugá-lo
Disse que me pagaria!
Eu não marquei a quantia
E entreguei-lhe o sendeiro,
Ele que é mau cavaleiro
Lá no caminho caiu,
E ao voltar, me iludiu
Não quis pagar meu dinheiro…

Um equívoco de Câmara Cascudo

Depois da morte de Leandro, em 1918, sua obra foi administrada por seu genro Pedro Batista. Depois, por volta dos anos 20, os direitos autorais foram adquiridos pelo poeta João Martins de Ataíde que passou a assinar os folhetos, adulterando, inclusive, os acrósticos leandrinos. Aconteceu o mesmo quando da aquisição por José Bernardo da Silva que, omitindo o nome de Leandro, anotava-se como editor proprietário. Esses subterfúgios levaram Câmara Cascudo, o nosso impagável estudioso, a cometer um equívoco. Em seu Vaqueiros e Cantadores ele nos dá a autoria de A História de Pedro Cem como sendo de João Martins de Ataíde, à página 259, do nº 81 da coleção Reconquista do Brasil (Nova Série). Diz:

“O poeta popular João Martins de Ataíde reconstituiu o romance, escrevendo-o em sextilhas, ao gosto das cantorias nordestinas. Há várias edições. A que transcrevo é de junho de 1932, impressa em Recife, Pernambuco. Pedro cem continua tendo leitores e sua existência servindo de exemplo apavorador.”

Quatro versões para O Soldado Jogador

A primeira história de Leandro que li foi O Soldado Jogador. Anotada por Leonardo Mota e ouvida do Cego Aderaldo, foi transcrita em Cantadores. O que pretendo é descrever as cinco primeira estrofes de quatro versões que tenho para essa história para que observemos as mudanças no texto de cada uma delas. É claro que não atrapalham o sentido geral da obra, mas pode, além de servir de curiosidade, dar testemunho de que se pode fazer algo pior com as obras dos nossos autores de cordel. Por isso, certa vez, quando o nosso Marco Haurélio estava na Luzeiro, pedi que a editora observasse o ISBN das publicações. Dessa forma se evitaria a intervenção na obra definitiva. Transcrevo a versão de Leota, ouvida do Cego Aderaldo:

Era um soldado francês
Que se chamava Ricarte,
Jogador de profissão;
Nunca ele foi numa parte
Que não trouxesse no bolso
O resultado da arte.

Os franceses, nesse tempo,
Tinham por obrigação
— o militar e o civil —
Seguir a Religião;
O Papa fazia a lei,
Botava em circulação.

Ricarte, soldado velho,
Com trinta anos de tarimba,
Aonde ele achava jogo
De sete e meio ou marimba,
Dizia logo: —“Eu vou ver
Água na minha cacimba!”

Um dia, faltou-lhe o soldo…
Ricarte pôs-se a pensar
Onde podia haver jogo
Que ele pudesse jogar…
Era domingo e a Missa
Não havia de tardar.

Dinheiro não tinha um xis!
Fiado nem se falava,
Pois um soldado francês,
Na bodega em que comprava,
Só pegava um objeto
Porém depois que pagava…

MOTA, Leonardo. Cantadores. 6ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. Pg. 110-114


Versão da Antologia da Casa de Rui Barbosa

Perceba-se que não interferi na acentuação gráfica como era na época.

Era um soldado Francês
Que se chamava Ricardo
Jogador de profissão
E nunca foi numa parte
Que não trouxesse no bôlso
O resultado da arte.

Os franceses neste tempo
Tinham por obrigação
O militar ou civil
Seguir a religião
O Papa deitava a lei
Botava em circulação.

Ricardo soldado velho
Com trinta anos de tarimba
Aonde achava jôgo
De lasquinê ou marimba
Dizia logo eu vou ver
Água em minha cacimba.

Um dia faltou-lhe saldo
Pôs-se Ricardo a pensar
Onde podia haver jôgo
Que ele podesse jogar
Era domingo e a missa
Não havia de tardar.

Dinheiro não tinha um X
A crédito êle nem falava
Pois um soldado francês
Na taberna onde comprava
Só pegava no objeto
Porém depois que pagava.

LITERATURA POPULAR EM VERSO. Antologia. Tomo I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Casa de Rui Barbosa, 1964. Coleção de textos da língua portuguesa moderna-4. Pp. 457-460.

A versão de Irani Medeiros

Era um soldado francês
Que se chamava Ricarte
Jogador de profissão
E nunca foi numa parte
Que não trouxesse no bolso
O resultado da arte.

Os franceses nesse tempo
Tinham por obrigação
O militar ou civil
Seguir a religião
O Papa deitava a lei
Botava em circulação.

Ricarte soldado velho
Com trinta anos de tarimba
Aonde ele achava jôgo
De lasquinê ou marimba
Dizia logo: eu vou ver
Água na minha cacimba.

Um dia faltou-lhe o soldado
Pôs-se Ricarte a pensar
Onde podia haver jogo
Que ele pudesse jogar
Era domingo e a missa
Não havia de tardar.

Dinheiro não tinha um xis
A crédito êle nem falava
Pois o soldado francês
Na taberna onde comprava
Só pegava no objeto
Porém depois que pagava.

MEDEIROS, Irani (org). Leandro Gomes de Barros. No reino da poesia sertaneja. João Pessoa: Idéia, 2002.

A versão da Queima-Bucha

Era um soldado francês
Que se chamava Ricarte
Jogador de profissão
E nunca foi numa parte
Que não trouxesse no bolso
O resultado da arte.

Os franceses nesse tempo
Tinham por obrigação
O militar ou civil
Seguir a religião
O Papa deitava a lei
Botava em circulação.

Ricarte, soldado velho
Com trinta anos de tarimba
Aonde ele achava jogo
De lasquinê ou marimba
Dizia logo: — Eu vou ver
Água na minha cacimba!

Um dia faltou-lhe o soldo
Pôs-se Ricarte a pensar
Onde podia haver jogo
Que ele pudesse jogar
Era Domingo e a missa
Não havia de tardar.

Dinheiro não tinha um “xis”
A crédito ele nem falava,
Pois o soldado francês
Na taberna onde comprava
Só pegava no objeto
Porém depois que pagava.

BARROS, Leandro Gomes de. O soldado jogador. Mossoró: Queima-Bucha, 2005.

O Cachorro dos Mortos, de Leandro Gomes de Barros

Imaginem um crime brutal no qual três irmãos de uma mesma família são assassinados, levando a mãe a morrer em estado de choque e o pai a enlouquecer e também falecer desesperado e vário. Agora, imaginem que essa brutalidade foi praticada tendo como testemunha o fiel cachorro da família. Imaginem, ainda, que o crime ficou sem solução por quatro anos, mesmo cumpridas todas as diligências e tendo sido mobilizadas todas as autoridades do estado da Bahia. Coloquemos o nome do cachorro de Calar. Pois bem, meus amigos, é esse o argumento de O Cachorro dos Mortos, clássico entre os clássicos do cordel brasileiro. As autoridades literárias de plantão não o leram, os professores não o adotaram nos cursos de Letras do país, os críticos literários de vanguarda sequer sabem do que se trata, a mídia o ignora, as igrejinhas acadêmicas reunidas em Paraty alheiam-se a sua importância, mas o romance escrito por Leandro Gomes de Barros surpreende há aproximados 100 anos, best seller que é. Creio mesmo que a maioria de meus amigos aqui no Facebook não o conheça, mas não será por falta de aviso. Estive trabalhando no estabelecimento do seu texto a partir das dezenas de edições sucedentes. Desde a de Pedro Batista, já anotada e modificada, até à da Editora Luzeiro (cuja capa reproduzo), passando pelas de João Martins de Ataíde e José Bernardo. Continuarei estudando esse cordel, exemplo de história na qual a natureza denuncia o criminoso. Tentarei em breve lançar uma edição definitiva, com texto estabelecido e suas variantes.

Os 4 do cordel

O cordel brasileiro, como hoje é, não tem qualquer raiz ibérica, mesmo com alguns pesquisadores insistindo nesse tese. A literatura de cordel ibérica ou francesa ou italiana, as folhas soltas, o corrido, nada têm em comum com o nosso cordel, forma poética. Há um sistema no cordel brasileiro: um autor, um editor, um leitor, um crítico. A literatura de cordel ibérica nunca teve, nem terá, porque morta, esse sistema. Os pais do cordel brasileiro são esses quatro cavalheiros enfatiotados aí:

São eles, no sentido horário: Leandro Gomes de Barros, o autor-editor-vendedor, criador da forma e do folheto; Silvino Pirauá, o poeta enciclopédico, criador do romance em versos; Francisco das Chagas Batista, fundador da Popular Editora, editor de Leandro, autor de antologias de poetas do povo; João Martins de Athayde, controverso editor e poeta, visionário do mercado do cordel, empreendedor ousado:

Observe-se em cada um o ar imponente de escritor e empresário, imagem distante daquela que alguns estudiosos nutrem chamá-los de analfabetos, autores de pouca ou nenhuma valia:

1. O ar bonachão de Leandro, com seu bigode de aço a furar os estudiosos da literatura brasileira, desafiando-os a encontrar um lugar para o cordel.

2. O ar intelectual de Pirauá como que a rir desses mesmos estudiosos, admirando-lhes a ignorância.

3. O ar desafiador de Chagas Batista chamando-os para a briga do punhal cordelístico contra a espada fumegante da crítica viciada.

4. O ar misterioso e despretensioso de Athayde como quem está se lixando para tudo isso

Os Cabras de Lampião, de Manoel D’Almeida Filho

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Os Cabras de Lampião é o clássico cordel de Manoel D’Almeida Filho. Foi um trabalho preparado pelo mestre poeta (nascido em Alagoa Grande-PB, em 1914) com muita pesquisa, muita delicadeza poética, muita lucidez. Nunca a história do herói do sertão foi tão esmiuçada em cordel. Nunca ouviremos nas mídias dedicadas às minúcias literárias que esse poema está inserido no rol das 10 mais importantes narrativas do séc. XX. Mas a academia alemã o considera. Na época em que isso aconteceu, o próprio Manoel de Almeida ficou chocado, pois, para ele, o livro seria uma biografia e não uma narrativa de ficção. Todavia o que D’Almeida não levou em consideração é que o seu texto é uma epopeia e, como tal, reúne em seus versos a história real tomando sol na praia do maravilhoso. Em 2014 celebraremos o centenário do grande desbravador do cordel brasileiro.

Grinaura e Sebastião

José Pacheco foi o autor de A Chegada de Lampião No Inferno, clássico entre os clássicos do cordel brasileiro. A história de Lampião no cordel toma um novo rumo a partir dele e vários folhetos vieram depois tentando o mesmo sucesso, sem alcançá-lo. Nele, o herói do sertão incendeia o inferno, criando uma quebradeira geral. Com muita sagacidade, Pacheco é consagrado entre os autores de maior reconhecimento no gênero humorístico em cordel, sem necessitar de artifícios que não sejam a criatividade e a presença de espírito. Mas não foi apenas um autor de gracejos. Escreveu também romances densos, com tramas complicadas e ótimos desfechos como A História Completa de Grinaura e Sebastião, trama rural de aventura. Na imagem, as capas da primeira edição, produzida no Recife em setembro de 1944, e a atual da Editora Luzeiro. Note-se na capa de 1944 a ilustração com par romântico hollywoodiano, desmistificando o conceito de capas com xilogravura.

A respeito de Ferrabrás, Oliveiros e Leandro

Leandro Gomes de Barros é, sem qualquer sombra de dúvida, o pai do cordel brasileiro. Não só por ter sido pioneiro nas publicações ou ter inventado a profissão de autor-editor-revendedor de folhetos. Também, e talvez seja o indício mais forte, por ter experimentado todas as formas, estilos e modalidades poéticas. Experimentou para depurar. Degustou quadras, sextilhas, septilhas, décimas, martelos e outras estrofações. Foi do cordel ao soneto, cançonetas, odes, paródias. Provou das pelejas, contos universais, novelas ibéricas. Enveredou pelos temas sociais, cantou a cidade do Recife, glosou com outros amigos poetas. Crítico contumaz, observador político, não teve medo de errar, nem de quebrar o pé de algum verso. Rebuscou sua escrita e fundou o seu “marco brasileiro”. Ninguém o superou. Pelo contrário, qualquer referência à poesia cordelística obrigatoriamente deverá citar o filho de Pombal.

Dentro de sua produção encontraremos a fundação das adaptações para o cordel brasileiro das novelas clássicas europeias como Donzela Teodora, João Da Cruz, O Rei Miséria, Branca de Neve, Juvenal e o Dragão, entre outros. Contemplando, ainda, esse veio do cordel brasileiro, nos deparamos com esse capítulo da História de Carlos Magno: a Batalha de Oliveiros e Ferrabrás. Alguns pesquisadores, e muitos poetas, acreditam existir um ciclo carolíngio no cordel do Brasil por conta desse poema de Leandro.  Não acredito. Primeiro por não aceitar a classificação em ciclos, segundo por não encontrar um número significativo de obras dentro do todo cordelístico que satisfaça esse olhar. Supondo que se possa classificar o cordel em ciclos, pergunta-se como se caracteriza um ciclo, o que o determina? A resposta seria a presença de uma produção expressiva no bojo da produção total do cordel, bem como seu prolongamento no tempo e no espaço.

Não é o que se vê nesse caso de Carlos Magno. Podemos listar, além dos folhetos de Leandro, esta Batalha, e a Prisão de Oliveiros, quantos outros títulos? Talvez não cheguem a dez. Considerando a produção de cordel no Brasil, digamos 50 mil títulos numa contagem sem qualquer suporte palpável, cinco ou dez folhetos nada representam. Agora, olhemos para sua produção no tempo. Quantos folhetos sobre Carlos Magno foram produzidos no ano de 2011? Talvez um, mas não coloca o Rei de França em outras aventuras, a não ser nessa célebre batalha. E no espaço? Não constam folhetos sobre a cavalaria carolíngia escritos e publicados em São Paulo, ou no Rio, recentemente. Argumento fazendo a analogia com Lampião: em todos os tempos e em vários lugares haverá sempre um poema sobre o herói nordestino e o número de títulos no qual é protagonista aumenta a cada dia. Entretanto isso é só mais um debate. O mais importante é que, com ciclo ou sem ciclo, deve-se a Leandro a inauguração da presença de Carlos Magno e seus doze pares de França na Literatura Brasileira, e não só no cordel.

Noite de amor em Poço Redondo

Aquela noite, 28 de julho, era a noite de seus desejos. Seus corpos se amariam como nunca. Seus olhos confessavam seu amor. Havia uma necessidade de abraçar mais forte, de se beijar mais quente, de sussurrar segredos. O suor os unia em complexa solução salgada. Seus fluidos se misturavam cumprindo seu destino. A lua, a noite, o silêncio no campo. A terra calava-se diante de tanta cumplicidade. Nus, abraçados, juraram amor eterno, enquanto seus dedos se entrelaçavam. A rusticidade de suas vidas nunca invalidara seus momentos de paixão. O cactus, a poeira da caatinga, os bichos mais estranhos, a brisa inexistente, tudo reverenciava e abençoava sua união. Naquela noite, toda a alegria do mundo invadia-lhes a aura. Até que veio a manhã e adormeceram para sempre.

O martírio de uma mãe pelo filho drogado, de Varneci Nascimento

Há algum tempo li um cordel intitulado A peleja de Aloncio com Dezinho. Fiquei entusiasmado com a possibilidade de ver as pelejas voltando às raias do cordel. Surpreendi-me mais ainda porque aquela não era uma peleja tradicional, como nós conhecemos, retratando o ambiente de uma cantoria, com dois cantadores disputando proezas e trava-línguas. Transcendia a tradição e apresentava, em um trabalho poético-antropológico, um mecanismo social conhecido como batalhão, praticamente desaparecido da região de Banzaê, cidade do norte da Bahia.

O motivo do batalhão era um mutirão de homens que escolhiam a roça daquele mais precisado para capinar e preparar a terra para o cultivo de uma lavoura. A motivação era servida pelo canto coletivo, um ritual no qual os cantos de trabalho determinavam a disposição dos trabalhadores. Mas esse canto era diferente: regiam-no dois poetas repentistas, improvisando seus versos, intermediados por um refrão. Ao invés do som monocórdio das violas, o ritmo se dava pelo atrito das enxadas no solo e a solfa, a melodia, repetia-se de uma fonte ancestral indeterminada.

Em minha tese de doutorado repeti a primeira estrofe do folheto, que não colocarei aqui para obrigar o leitor a buscar essa peleja com o próprio autor. Na época, afirmei ser uma das mais belas aberturas de cordéis que eu já lera. Jorrava sensibilidade e a rima certa, o metro perfeito: a exatidão. Prosseguia de forma idêntica por mais sete ou oito estrofes até o narrador sair de cena e oferecer voz aos repentistas. Dados os motes e os temas, lá iam eles capinando, como se a roça fosse uma imensa catedral a céu aberto por onde ecoava o canto gregoriano dos que afagavam a terra buscando sua misericórdia, a fertilidade.

O autor construía, assim, o seu marco diferenciador: o registro de uma tradição asfixiada. Pois bem, agora faço a apresentação deste novo trabalho do mesmo poeta. Outra fase norteia seu trabalho. Com mais de duzentos títulos escritos, já despediu-se a tempos dos escritos intuitivos, assumindo a rédea arrazoada do seu fazer poético. Marca de sua produção é o seu compromisso social. Historiador que é, transporta para seu cordel a reflexão sobre os fatos decisivos da história nacional, leiam-se O massacre de Canudos e O cangaço sustentado por coronéis.

Não fica nisso, trafega pelo gracejo com desenvoltura. Veja-se o caso de Iniciação sexual na zona rural, no qual cria, para a reflexão sobre os ritos de passagem ligados à sexualidade, um ambiente de humor para suavizar as situações vexatórias típicas aos pré-adolescentes. O seu nome inscreve-se na história do cordel brasileiro. Este seu poema, que apresento, consolida o seu lado de humanista, preocupado com a ética e com os caminhos da sociedade e, mais, é o texto agraciado com o Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel 2010 – Edição Patativa do Assaré. Varneci Nascimento é referência do cordel em São Paulo. Como se diz em suas costas: — É uma autarquia!

Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, de Cícero Pedro de Assis

As adaptações dos clássicos para o cordel é uma tradição. Os livros do povo, como dizia Câmara Cascudo, tiveram sua versão em cordel nos primeiros dez anos do século XX. Encontraremos a Donzela Teodora, a Imperatriz Porcina, Genoveva de Brabante, Rosa de Milão e outros personagens clássicos universais agindo nas sextilhas do cordel. As novelas de cavalaria também passaram por esse filtro poético. Os estudiosos apontam um hipotético ciclo carolíngio, ligado a Carlos Magno com Oliveiros e Ferrabrás, Roldão e até Joana d’Arc. Entretanto a matéria do Rei Artur foi pouco explorada. Talvez a ligação remota com o ciclo arturiano tem se dado com Roberto do Diabo. Agora aparece o Rei Artur, do poeta Cícero Pedro de Assis.

A narrativa é mediada pelo matiz episódico, mas o poeta inicia com uma sextilha primorosa sobre a paixão, para adiantar a trama urdida por Merlin para a concepção de Artur:

A paixão é sentimento

Que deixa o peito arrasado

Porque, sem dó, cega os homens,

Isso é fato consumado.

Há quem cometa loucura

Quando está apaixonado.

Cícero é um poeta senhor do seu ofício no cordel e consciente de sua importância. A estrofe final do seu poema é a marca do caráter literário escrito: o acróstico, a tradicional assinatura e marca poética visível ao leitor. O acróstico de Cícero é primoroso, uma confissão sobre o trabalho que é adaptar:

Concluí a grande história,

Importante e valiosa,

Conhecida em todo o mundo.

E u depois de lê-la em prosa,

Resolvi contar em versos,

Obra que sei que é famosa.


Cícero Pedro de Assis é pernambucano, nascido em Caruaru aos 18 de julho de 1954. Membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, ocupa a cadeira de nº 30, cujo patrono é o grande poeta paraibano José Galdino da Silva – Duda. Radicado na cidade de São Paulo desde 1970, é poeta atuante. Dr. Cilso, como costuma se apresentar, escreveu outras adaptações para o cordel como As aventuras de Robinson Crusoé e Aventuras de Simbá, o marujo (Editora Luzeiro).

Os três fios de cabelo de ouro do Diabo, de Josué Gonçalves de Araújo

 

 

A figura do diabo popularizou-se no Nordeste brasileiro com o cordel. Todavia, diferente daquele elemento medonho, dono de maldades e tenebroso, oriundo da magia negra, senhor das trevas, encontramos nas sextilhas cordelísticas um ser que, apesar de conservar sua face maligna, transforma-se em uma ferramenta de riso, secretário do humor, ambulante carrancudo da gargalhada. Parece paradoxal, mas foi a forma de os leitores e ouvintes verem-se vingados.

Portador de alcunhas as mais diversas, o infiel desfila, neste poema que apresento, como o coisa-ruim, o tinhoso, chifrudo, capeta, arrenegado, bicho-papão, transformando-se de encarnação do terror em oráculo da benignidade ao revelar, sem o saber, os enigmas necessários ao herói do poema para que seja bem sucedido em sua missão. É o conto de Grimm adaptado às estrofes clássicas do cordel. É a representação universal do vencedor que todos ousamos ser. O caminho para a redenção dos depauperados, pelas artes mágicas.

Josué estreou no cordel, na Luzeiro, com uma trama original O coronel avarento (ou O homem que a terra rejeitou) e seguiu o caminho com O mistério da pele da novilha. Antes, embrenhara-se pelo conto e pelo romance, treinou sonetos, mas foi no embate com o cordel que sentiu ter encontrado seu caminho. Segundo diz, iniciou-se tarde. O cordel, entretanto, alojou-se em seu coração desde quando ouviu, pela primeira vez, os antigos versos das histórias pioneiras jorrando da leitura ritmada de Sá Maria, sua avó.

O valente João Acaba-Mundo foi seu herói primevo, seu modelo, durante aqueles primeiros dias, posteriores à audição. Ali, o cordel escolhera mais um. Passados 50 anos, escreve sua primeira página cordelial. Movido pela ansiedade, satisfeito com a receptividade de estreia — o meio cordelístico paulistano o abraçara —, coisa que move todo iniciante, Josué partiu para a produção e publicação de suas histórias. Seu encontro com a Caravana do Cordel foi decisivo, amadureceu sua prática poética e estabilizou sua necessidade de escrever.

Agora, senhor do seu ofício, conhecedor das nuanças caprichosas dessa forma poética, foi agraciado com o Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel 2010 – Edição Patativa do Assaré, do Ministério da Cultura. Todos nós nos emocionamos ao vê-lo em segundo lugar, ultrapassado apenas pelo Mestre Azulão.  Este folheto é o produto vencedor. Encontraremos uma letra leve e escorreita, que sabe narrar e descrever. Em suas rimas ouviremos a boa sonoridade desejada. Em sua métrica o resultado do estudo aplicado.

Com a publicação de Os três fios de cabelo de ouro do diabo, consolida-se em seu labor literário, cumprindo, assim como o filho da sorte de seu cordel, mais uma etapa de sua missão. Sabendo que o rio, com seu barqueiro mal humorado, ainda está longe de se fazer presente, acreditamos que sua inspiração nos presenteará em breve com outra história original, saída diretamente para o cordel, oferecendo-lhe o caminho da continuidade criativa. Josué sabe, com todas as certezas, que é o cordel quem escolhe e não o poeta.

A ganância de um preguiçoso, de Aldy Carvalho

 

O cordel brasileiro registrou em sua formação a presença de personagens decisivos, ora representando um tipo geral do povo, ora promovendo a reflexão sobre uma particularidade desse mesmo povo. Dessa forma desfilaram: João Grilo, o astuto, vivo e sabido; Chicó, um mentiroso inveterado, mas sensível; Vicente, o ladrão superior; Chicuca e Tubiba, troncos da valentia sem propósito; o próprio Lampião, simbolizando o mito emancipatório; e outros que o tempo não sepultou.

A presença do preguiçoso é outro traço do cordel extraído do meio do todo poético brasileiro. Devidamente registrado e catalogado em histórias de trancoso e contos populares de todos os continentes, ele, o preguiçoso, desembarca neste poema de Aldy Carvalho carregado com um traço distintivo diferenciado: a ambição. Sendo esse traço apenas o pretexto, a ferramenta utilizada pelo poeta para fazer desfilar pelas suas sextilhas elementos ancestrais significativos do interior nordestino.

O conselheiro a que todos recorrem para acalentar suas dores e observar saídas; os ciganos em grupo, mestres na arte do jogo e da divinação; as velhas e conhecidas botijas carregadas de ouro e maldição; os sonhos misteriosos reveladores da vida e suas armadilhas; a anciã malévola, herdeira dos males dos contos de fadas; os animais fantásticos, detentores de razão e vontades; os grupos de romeiros em busca de paz e devoção. E como em todos os contos de ensinamento: o arrependimento e o recomeçar.

Aldy retira de sua vivência e experiência, como músico consagrado e competente, os arquivos para a composição do seu poema sem máculas. Como anunciava em seu disco Redemoinho, de mais de 20 anos passados: é preciso preparar o chão para a colheita… os nossos destinos se encontram nas veredas. O cordel encontrou Aldy: ganha Aldy com o cordel, ganhamos nós com Aldy. A colheita é de todos.